Conversávamos, outro dia, sobre a rotina. De cara, fizemos a ela as críticas de praxe: a rotina envenena a vida com sua uniformização, tornando-nos incapazes de perceber novas respostas e caminhos diferentes. Padronizando tudo o que pode, tornando mecânicas nossas ações cotidianas, a rotina parece nos tornar, também, seres padronizados, máquinas que respondem sempre da mesma maneira às exigências da vida. E como seria boa uma vida sem rotina! – dizíamos: evitá-la deve ser o trabalho de todo aquele que procura uma vida mais autêntica e humana, em que o imponderável, o novo e não-programado possam encontrar lugar, fazendo-nos ver sempre o mundo com olhos renovados...
A conversa ia por aí quando comecei a divagar. A rotina, descrita como uma série de procedimentos fixos, mecânicos, a qual nos submetemos, parece mesmo ser muito ruim. Mas seria essa toda a verdade do caso? Não teria ela algum aspecto que a pudesse salvar da absoluta condenação?
Há um recurso simples, que é apelar para a praticidade. Hora de acordar, de tomar banho, café, hora do ônibus: a seqüência rotineira, incorporada, facilita as coisas, já que não precisamos pensar em todas essas coisas para agir. Fazemos automaticamente. Outro exemplo é o da arte de dirigir: a angústia de todo motorista novo é ser capaz de lembrar cada um dos procedimentos que fazem o carro andar. Enquanto estas ações não se tornam uma rotina, sair de carro é motivo de ansiedade. Uma vez incorporadas e, por assim dizer, esquecidas, dirigimos quase sem perceber.
Existem situações, no entanto, em que uma tentativa de defesa da rotina não é tão simples. Por exemplo, na música Cotidiano, de Chico Buarque, o sujeito diz que
Todo dia ela faz
A conversa ia por aí quando comecei a divagar. A rotina, descrita como uma série de procedimentos fixos, mecânicos, a qual nos submetemos, parece mesmo ser muito ruim. Mas seria essa toda a verdade do caso? Não teria ela algum aspecto que a pudesse salvar da absoluta condenação?
Há um recurso simples, que é apelar para a praticidade. Hora de acordar, de tomar banho, café, hora do ônibus: a seqüência rotineira, incorporada, facilita as coisas, já que não precisamos pensar em todas essas coisas para agir. Fazemos automaticamente. Outro exemplo é o da arte de dirigir: a angústia de todo motorista novo é ser capaz de lembrar cada um dos procedimentos que fazem o carro andar. Enquanto estas ações não se tornam uma rotina, sair de carro é motivo de ansiedade. Uma vez incorporadas e, por assim dizer, esquecidas, dirigimos quase sem perceber.
Existem situações, no entanto, em que uma tentativa de defesa da rotina não é tão simples. Por exemplo, na música Cotidiano, de Chico Buarque, o sujeito diz que
Todo dia ela faz
Tudo sempre igual
Me sacode
Às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca
De hortelã...
http://letras.terra.com.br/chico-buarque/82001/
E depois elenca toda uma seqüência repetitiva de ações que ele e a mulher fazem, e que o deixam desesperado. Sim, a rotina está aí, matando o amor dos dois, diríamos. Só que poderíamos pensar o seguinte: justamente por não haver mais amor é que a mulher e seu beijo com gosto de pasta de dente parecem a ele tão “nauseantes”, no sentido existencialista da coisa.
Continuando com o exemplo, é a rotina, que fixa certos procedimentos, que permite ao homem ver que está cheio da mulher... Se toda manhã ele fosse acordado das formas mais inusitadas, talvez não percebesse isso. Mesmo que não a amasse mais. Ele seria distraído pela falta de rotina.
Penso que a rotina não é boa ou ruim por si mesma. Adoro a rotina de acordar no domingo e ler o jornal, por exemplo. Mas detesto a rotina de acordar cedo para trabalhar. A rotina de receber um beijo, todo dia, traz saúde e alegria... Isso, se for o beijo de alguém que amamos.
Mas há um outro aspecto da rotina, ou melhor, da crítica que fazemos à rotina, que eu gostaria de lembrar. O que será que nossa vontade em fugir dela pode esconder? Fico pensando na fascinação pelo novo, essa característica tão marcante de nosso tempo. H. Arendt já disse, no seu Entre o Passado e o Futuro, que tudo o que é novo, ou é apresentado como novo, reveste-se, para nós, de uma aura positiva de eficiência, beleza e verdade.
A rotina, por definição, é o estabelecido. Estritamente falando, não pode haver uma nova rotina, ou pelo menos ela não pode existir por muito tempo: fica velha. E precisa ser abandonada, se não quisermos... entrar na rotina.
Então, criamos a rotina de escapar da rotina. A rotina de evitar a rotina. Distraímo-nos com ela. Divertimo-nos com ela. E eu penso, aqui, no divertimento de Pascal. Sempre é possível mostrar o quanto a rotina nos afasta do conhecimento de nós mesmos: mergulhamos nas atividades cotidianas de nossas vidas para esquecer de todas as nossas misérias. Diz o filósofo:
“Tédio: nada é mais insuportável ao homem do que um repouso total, sem paixões, sem negócios, sem distrações, sem atividades. Sente então seu nada, seu abandono, sua insuficiência, sua dependência, sua impotência, seu vazio” (Pensamentos, 131).
A rotina das tarefas, então, nos dá tudo isso: atividades e distrações. Mas, e a rotina da troca de rotina, não seria ela um sofisticado divertimento, com o qual zombamos do vulgo, sem perceber que estamos todos no mesmo barco?
“Divertimentos: Quando, às vezes, me pus a considerar as diversas agitações dos homens, e os perigos e os castigos a que eles se expõem, na corte e na guerra, originando tantas contendas, tantas paixões, tantos cometimentos audazes, e muitas vezes funestos, descobri que toda a infelicidade dos homens vem de uma só coisa, que é não saberem ficar quietos dentro de um quarto” (Pensamentos, 139).
Toda ação humana se parece, desse jeito, com uma fuga, com uma corrida: para dentro da rotina ou contra a rotina, tanto faz; uma distração, que nos impede de ver que, para nós, o que há de mais importante é o jogo, não importa qual, e não seu resultado.
Enquanto pudermos jogar, vamos bem...
Com rotina ou sem rotina.
http://letras.terra.com.br/chico-buarque/82001/
E depois elenca toda uma seqüência repetitiva de ações que ele e a mulher fazem, e que o deixam desesperado. Sim, a rotina está aí, matando o amor dos dois, diríamos. Só que poderíamos pensar o seguinte: justamente por não haver mais amor é que a mulher e seu beijo com gosto de pasta de dente parecem a ele tão “nauseantes”, no sentido existencialista da coisa.
Continuando com o exemplo, é a rotina, que fixa certos procedimentos, que permite ao homem ver que está cheio da mulher... Se toda manhã ele fosse acordado das formas mais inusitadas, talvez não percebesse isso. Mesmo que não a amasse mais. Ele seria distraído pela falta de rotina.
Penso que a rotina não é boa ou ruim por si mesma. Adoro a rotina de acordar no domingo e ler o jornal, por exemplo. Mas detesto a rotina de acordar cedo para trabalhar. A rotina de receber um beijo, todo dia, traz saúde e alegria... Isso, se for o beijo de alguém que amamos.
Mas há um outro aspecto da rotina, ou melhor, da crítica que fazemos à rotina, que eu gostaria de lembrar. O que será que nossa vontade em fugir dela pode esconder? Fico pensando na fascinação pelo novo, essa característica tão marcante de nosso tempo. H. Arendt já disse, no seu Entre o Passado e o Futuro, que tudo o que é novo, ou é apresentado como novo, reveste-se, para nós, de uma aura positiva de eficiência, beleza e verdade.
A rotina, por definição, é o estabelecido. Estritamente falando, não pode haver uma nova rotina, ou pelo menos ela não pode existir por muito tempo: fica velha. E precisa ser abandonada, se não quisermos... entrar na rotina.
Então, criamos a rotina de escapar da rotina. A rotina de evitar a rotina. Distraímo-nos com ela. Divertimo-nos com ela. E eu penso, aqui, no divertimento de Pascal. Sempre é possível mostrar o quanto a rotina nos afasta do conhecimento de nós mesmos: mergulhamos nas atividades cotidianas de nossas vidas para esquecer de todas as nossas misérias. Diz o filósofo:
“Tédio: nada é mais insuportável ao homem do que um repouso total, sem paixões, sem negócios, sem distrações, sem atividades. Sente então seu nada, seu abandono, sua insuficiência, sua dependência, sua impotência, seu vazio” (Pensamentos, 131).
A rotina das tarefas, então, nos dá tudo isso: atividades e distrações. Mas, e a rotina da troca de rotina, não seria ela um sofisticado divertimento, com o qual zombamos do vulgo, sem perceber que estamos todos no mesmo barco?
“Divertimentos: Quando, às vezes, me pus a considerar as diversas agitações dos homens, e os perigos e os castigos a que eles se expõem, na corte e na guerra, originando tantas contendas, tantas paixões, tantos cometimentos audazes, e muitas vezes funestos, descobri que toda a infelicidade dos homens vem de uma só coisa, que é não saberem ficar quietos dentro de um quarto” (Pensamentos, 139).
Toda ação humana se parece, desse jeito, com uma fuga, com uma corrida: para dentro da rotina ou contra a rotina, tanto faz; uma distração, que nos impede de ver que, para nós, o que há de mais importante é o jogo, não importa qual, e não seu resultado.
Enquanto pudermos jogar, vamos bem...
Com rotina ou sem rotina.