O texto de João Pereira Coutinho, publicado originalmente na Folha de São Paulo (15/01/08), tem muito a dizer àqueles que, como nós, acreditam que toda Filosofia, para ser digna do nome, precisa ser, também, um exercício de conversa, de diálogo.
VAMOS CONVERSAR?
João Pereira Coutinho
Não vale rir dos neandertais. Investigadores do Instituto Max Planck, em Berlim, descobriram recentemente que os nossos antepassados já conversavam entre si. O DNA não mente e o gene que controla os músculos necessários para o efeito permitia que os homens-macaco tivessem momentos de conversa nas suas cavernas.
A notícia só pode provocar inveja aos contemporâneos. Porque "conversa", no sentido verdadeiro do termo, é fenómeno que raramente se ouve ou vê. O caso é tão grave que o ensaísta Stephen Miller dedicou tratado específico ao tema. Chama-se "Conversation: A History of a Decli-ning Art" (Yale, 336 págs.). A tese está resumida no título: dos Gregos aos homens de hoje, a conversa, sempre presente, foi recuando da esfera pública e privada nos últimos dois séculos. Os nossos grunhidos seriam um insulto para a sofisticação dos neandertais.
Mas o que é uma "conversa"? A melhor forma de responder à questão é formular outra: o que é, no fundo, um bom "conversador"? Para Miller, existem cinco qualidades que, ao longo da história, foram reconhecidas como essenciais.
Para começar, o bom conversador não é apenas aquele que sabe falar; é, sobretudo, alguém que sabe ouvir, porque uma conversa não é uma sucessão de monólogos. A conversa é uma dança que vive do envolvimento dos dançantes. A melhor forma de não errar os passos é estar atento aos passos dos nossos pares.
Em segundo lugar, o bom conversador entende que a conversa não tem um fim determinado, exceto o seu próprio fim. A conversa vale pelo prazer que retiramos dela, não pela ambição utilitária de chegarmos a um ponto qualquer.
Em terceiro lugar, um bom conversador nunca fica na defensiva quando os seus argumentos são questionados. E por quê?
Quarto: porque o conversador tem sentido de humor. Mas um sentido de humor que não se confunde com a ambição cansativa de bombardear o interlocutor com sucessivas piadas: o humor é como certos condimentos gastronômicos. Deve ser usado com critério, caso contrário, enjoa.
O bom conversador não é apenas aquele que sabe falar; é, sobretudo, alguém que sabe ouvir.
E, naturalmente, o bom conversador é polido, sem ser efeminado. A rudeza raramente faz um bom conversador.
Cinco qualidades, enfim, que Miller vai relatando ao longo da história humana, para as concentrar no século 18. Lemos as páginas do livro e é difícil não sentir a distância que nos separa de Paris ou Londres no Século das Luzes. Em Londres, os clubes de cavalheiros, por onde deambulavam conversadores célebres como Samuel Johnson, Joshua Reynolds ou Erasmus Darwin (avô do famoso Charles), não permitiam apenas a conversa regular que civiliza o espírito; a conversa era também a base de descobertas científicas ou experiências literárias.
E, em Paris, os salões alçaram a arte da conversa a alturas inigualadas. Quando consultamos a "Encyclopedia", encontramos sob o tópico respectivo as três regras que competia às "salonnières" fazer cumprir: não ser demasiado entediante na conversa; discursar naturalmente e sem afetação; e, de preferência, alternar entre o frívolo e o sério.
Mas se o século 18 foi uma era de grandes conversadores, ele também revelou aqueles que acabariam por determinar o declínio dessa arte. E na história contada por Stephen Miller, é Jean-Jacques Rousseau quem ocupa lugar central: o homem que, abominando a cultura de salão, declarou guerra aos "artifícios" da sociedade. Para Rousseau, a sociedade comercial falsificara a natureza humana. Caberia aos homens regressar à sua "autenticidade" natural, o que implicava um afastamento da polidez própria da vida em comum.
A herança de Rousseau ainda hoje permanece entre nós. E permanece sob dois extremos. De um lado, acreditamos que a "autenticidade" basta como expressão de excelência e não existe escritor, artista, participante do "Big Brother" que não exerça genuinamente a sua própria genuinidade: o que interessa é "exprimir", e não "sublimar", um feito que normalmente termina numa gritaria de selvagens.
Mas a idéia de "autenticidade", quando não conduz ao ruído extremo, conduz ao silêncio extremo: se cada um obedece apenas à sua verdade interior, é impossível argumentar ou julgar a verdade interior de cada um. O pensamento politicamente correio é a besta que resume essa atitude.
E a conversa? Para o espírito do tempo, a conversa é coisa de neandertais. A nossa "autenticidade" ainda não nos permite estar ao nível dos macacos.
VAMOS CONVERSAR?
João Pereira Coutinho
Não vale rir dos neandertais. Investigadores do Instituto Max Planck, em Berlim, descobriram recentemente que os nossos antepassados já conversavam entre si. O DNA não mente e o gene que controla os músculos necessários para o efeito permitia que os homens-macaco tivessem momentos de conversa nas suas cavernas.
A notícia só pode provocar inveja aos contemporâneos. Porque "conversa", no sentido verdadeiro do termo, é fenómeno que raramente se ouve ou vê. O caso é tão grave que o ensaísta Stephen Miller dedicou tratado específico ao tema. Chama-se "Conversation: A History of a Decli-ning Art" (Yale, 336 págs.). A tese está resumida no título: dos Gregos aos homens de hoje, a conversa, sempre presente, foi recuando da esfera pública e privada nos últimos dois séculos. Os nossos grunhidos seriam um insulto para a sofisticação dos neandertais.
Mas o que é uma "conversa"? A melhor forma de responder à questão é formular outra: o que é, no fundo, um bom "conversador"? Para Miller, existem cinco qualidades que, ao longo da história, foram reconhecidas como essenciais.
Para começar, o bom conversador não é apenas aquele que sabe falar; é, sobretudo, alguém que sabe ouvir, porque uma conversa não é uma sucessão de monólogos. A conversa é uma dança que vive do envolvimento dos dançantes. A melhor forma de não errar os passos é estar atento aos passos dos nossos pares.
Em segundo lugar, o bom conversador entende que a conversa não tem um fim determinado, exceto o seu próprio fim. A conversa vale pelo prazer que retiramos dela, não pela ambição utilitária de chegarmos a um ponto qualquer.
Em terceiro lugar, um bom conversador nunca fica na defensiva quando os seus argumentos são questionados. E por quê?
Quarto: porque o conversador tem sentido de humor. Mas um sentido de humor que não se confunde com a ambição cansativa de bombardear o interlocutor com sucessivas piadas: o humor é como certos condimentos gastronômicos. Deve ser usado com critério, caso contrário, enjoa.
O bom conversador não é apenas aquele que sabe falar; é, sobretudo, alguém que sabe ouvir.
E, naturalmente, o bom conversador é polido, sem ser efeminado. A rudeza raramente faz um bom conversador.
Cinco qualidades, enfim, que Miller vai relatando ao longo da história humana, para as concentrar no século 18. Lemos as páginas do livro e é difícil não sentir a distância que nos separa de Paris ou Londres no Século das Luzes. Em Londres, os clubes de cavalheiros, por onde deambulavam conversadores célebres como Samuel Johnson, Joshua Reynolds ou Erasmus Darwin (avô do famoso Charles), não permitiam apenas a conversa regular que civiliza o espírito; a conversa era também a base de descobertas científicas ou experiências literárias.
E, em Paris, os salões alçaram a arte da conversa a alturas inigualadas. Quando consultamos a "Encyclopedia", encontramos sob o tópico respectivo as três regras que competia às "salonnières" fazer cumprir: não ser demasiado entediante na conversa; discursar naturalmente e sem afetação; e, de preferência, alternar entre o frívolo e o sério.
Mas se o século 18 foi uma era de grandes conversadores, ele também revelou aqueles que acabariam por determinar o declínio dessa arte. E na história contada por Stephen Miller, é Jean-Jacques Rousseau quem ocupa lugar central: o homem que, abominando a cultura de salão, declarou guerra aos "artifícios" da sociedade. Para Rousseau, a sociedade comercial falsificara a natureza humana. Caberia aos homens regressar à sua "autenticidade" natural, o que implicava um afastamento da polidez própria da vida em comum.
A herança de Rousseau ainda hoje permanece entre nós. E permanece sob dois extremos. De um lado, acreditamos que a "autenticidade" basta como expressão de excelência e não existe escritor, artista, participante do "Big Brother" que não exerça genuinamente a sua própria genuinidade: o que interessa é "exprimir", e não "sublimar", um feito que normalmente termina numa gritaria de selvagens.
Mas a idéia de "autenticidade", quando não conduz ao ruído extremo, conduz ao silêncio extremo: se cada um obedece apenas à sua verdade interior, é impossível argumentar ou julgar a verdade interior de cada um. O pensamento politicamente correio é a besta que resume essa atitude.
E a conversa? Para o espírito do tempo, a conversa é coisa de neandertais. A nossa "autenticidade" ainda não nos permite estar ao nível dos macacos.
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