sábado, 2 de fevereiro de 2008

Vamos Conversar?


O texto de João Pereira Coutinho, publicado originalmente na Folha de São Paulo (15/01/08), tem muito a dizer àqueles que, como nós, acreditam que toda Filosofia, para ser digna do nome, precisa ser, também, um exercício de conversa, de diálogo.


VAMOS CONVERSAR?

João Pereira Coutinho

Não vale rir dos neandertais. Investigadores do Instituto Max Planck, em Berlim, des­cobriram recentemente que os nos­sos antepassados já conversavam entre si. O DNA não mente e o gene que controla os músculos necessá­rios para o efeito permitia que os homens-macaco tivessem momentos de conversa nas suas cavernas.
A notícia só pode provocar inveja aos contemporâneos. Porque "con­versa", no sentido verdadeiro do ter­mo, é fenómeno que raramente se ouve ou vê. O caso é tão grave que o ensaísta Stephen Miller dedicou tra­tado específico ao tema. Chama-se "Conversation: A History of a Decli-ning Art" (Yale, 336 págs.). A tese está resumida no título: dos Gregos aos homens de hoje, a conversa, sempre presente, foi recuando da esfera pública e privada nos últimos dois séculos. Os nossos grunhidos seriam um insulto para a sofistica­ção dos neandertais.
Mas o que é uma "conversa"? A melhor forma de responder à ques­tão é formular outra: o que é, no fun­do, um bom "conversador"? Para Miller, existem cinco qualidades que, ao longo da história, foram re­conhecidas como essenciais.
Para começar, o bom conversador não é apenas aquele que sabe falar; é, sobretudo, alguém que sabe ouvir, porque uma conversa não é uma su­cessão de monólogos. A conversa é uma dança que vive do envolvimen­to dos dançantes. A melhor forma de não errar os passos é estar atento aos passos dos nossos pares.
Em segundo lugar, o bom conver­sador entende que a conversa não tem um fim determinado, exceto o seu próprio fim. A conversa vale pelo prazer que retiramos dela, não pe­la ambição utilitária de chegarmos a um ponto qualquer.
Em terceiro lugar, um bom con­versador nunca fica na defensiva quando os seus argumentos são questionados. E por quê?
Quarto: porque o conversador tem sentido de humor. Mas um sen­tido de humor que não se confunde com a ambição cansativa de bom­bardear o interlocutor com sucessi­vas piadas: o humor é como certos condimentos gastronômicos. Deve ser usado com critério, caso contrá­rio, enjoa.
O bom conversador não é apenas aquele que sabe falar; é, sobretudo, alguém que sabe ouvir.
E, naturalmente, o bom conversa­dor é polido, sem ser efeminado. A rudeza raramente faz um bom con­versador.
Cinco qualidades, enfim, que Miller vai relatando ao longo da histó­ria humana, para as concentrar no século 18. Lemos as páginas do livro e é difícil não sentir a distância que nos separa de Paris ou Londres no Século das Luzes. Em Londres, os clubes de cavalheiros, por onde deambulavam conversadores céle­bres como Samuel Johnson, Joshua Reynolds ou Erasmus Darwin (avô do famoso Charles), não permitiam apenas a conversa regular que civili­za o espírito; a conversa era também a base de descobertas científicas ou experiências literárias.
E, em Paris, os salões alçaram a ar­te da conversa a alturas inigualadas. Quando consultamos a "Encyclopedia", encontramos sob o tópico res­pectivo as três regras que competia às "salonnières" fazer cumprir: não ser demasiado entediante na con­versa; discursar naturalmente e sem afetação; e, de preferência, alternar entre o frívolo e o sério.
Mas se o século 18 foi uma era de grandes conversadores, ele também revelou aqueles que acabariam por determinar o declínio dessa arte. E na história contada por Stephen Miller, é Jean-Jacques Rousseau quem ocupa lugar central: o homem que, abominando a cultura de salão, de­clarou guerra aos "artifícios" da so­ciedade. Para Rousseau, a sociedade comercial falsificara a natureza hu­mana. Caberia aos homens regres­sar à sua "autenticidade" natural, o que implicava um afastamento da polidez própria da vida em comum.
A herança de Rousseau ainda hoje permanece entre nós. E permanece sob dois extremos. De um lado, acre­ditamos que a "autenticidade" basta como expressão de excelência e não existe escritor, artista, participante do "Big Brother" que não exerça ge­nuinamente a sua própria genuini­dade: o que interessa é "exprimir", e não "sublimar", um feito que nor­malmente termina numa gritaria de selvagens.
Mas a idéia de "autenticidade", quando não conduz ao ruído extre­mo, conduz ao silêncio extremo: se cada um obedece apenas à sua ver­dade interior, é impossível argu­mentar ou julgar a verdade interior de cada um. O pensamento politica­mente correio é a besta que resume essa atitude.
E a conversa? Para o espírito do tempo, a conversa é coisa de neandertais. A nossa "autenticidade" ain­da não nos permite estar ao nível dos macacos.

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