Onfray propõe uma ética que, tal qual a de Aristóteles, busca a felicidade (tradicionalmente vinculada à metafísica), mas sugere que esta felicidade caminha junto ao prazer (tradicionalmente vinculado ao físico). Em vez de separar felicidade e prazer (idéia e coisa, pensamento e sensação), o autor as sugere como complementares, ou como o que poderíamos chamar de dois lados da mesma moeda. Observe-se que não se trata de renegar a felicidade em nome do prazer. Apenas aponta a necessidade não renegar o prazer. Para quem tiver paciência, transcrevo abaixo um breve trecho em que o autor aborda a questão. Vale a pena:
Precaução de emprego: o hedonismo faz do prazer o soberano bem, aquilo a que se deve tender, o propósito capaz de federar a reflexão e a ação; o eudemonismo, por sua vez, afirma a necessidade de visar o bem-estar, a serenidade, a felicidade. Os dois termos existem e significam duas coisas distintas, sendo que o prazer e a felicidade não sobrepõem exatamente as mesmas situações, as mesmas emoções, o mesmo estado físico e psíquico. Quanto a mim, vejo menos dois mundos separados do que duas maneiras de significar uma realidade idêntica. O prazer pode proporcionar felicidade; a felicidade não exclui o prazer.
Os dois estados diferem menos quanto à natureza do que quanto à intensidade, até mesmo quanto ao momento da experiência. O indivíduo em questão evolui em um mesmo mundo que supõe a capacidade de manter uma relação inteligente consigo mesmo, colocada sob o signo da pulsão de vida e radicalmente hostil a toda pulsão de morte. O prazer proporciona uma sensação bastante violenta para que provoque um curto-circuito da consciência: no momento do gozo, há apenas ele e não há lugar para a razão, a inteligência ou o trabalho intelectual útil para saber que se vive nesse momento emocional específico. Seu ser aniquila a capacidade de uma consciência de si como sujeito emocionado.
Em contrapartida, a felicidade situa-se a montante ou a jusante: antes do prazer esperado ou depois daquele que se teve, em todos os exemplos ela se manifesta com a consciência, graças a ela e à sua interferência. O estado de felicidade, menos violento que o de prazer, invoca a doçura, a paz, a serenidade, a calma aferente às certezas de que um acontecimento alegre ocorrerá ou acaba de ocorrer. Com a felicidade, o corpo conhece arroubos mais voluptuosos do que com o prazer, gerador de forças mais terríveis, de energias aumentadas e consideráveis.
Mas imaginar o hedonismo e o eudemonismo como dois mundos separados implica um erro. Nenhum instrumento de medida física ou metafísica permite qualificar nem quantificar as intensidades úteis para decidir qual deles, a felicidade ou o prazer, tem o papel principal. Assim impõe-se uma definição do prazer, pois dois milênios de cristianismo contribuem singularmente para diabolizar esse termo e torná-lo inaudível, carregado de miasmas e odorizado pelos gases pútridos do inferno católico. Pois só para seus detratores ele significa o abandono puro e simples aos instintos: nenhum hedonista jamais propôs como ideal os plenos poderes dos instintos, das pulsões, das forças noturnas que assemelham o homem ao mais selvagem, ao mais brutal animal.
A ética grega é eudemonista. Sejam quais forem as escolas, elas convidam o homem que pratica a filosofia a se desvencilhar do que impede sua felicidade, a trabalhar seus desejos para rarefazê-los e torná-los inofensivos, a se desfazer de todas as amarras que dificultam e até impossibilitam um trabalho de purificação de si mesmo. O propósito é a autonomia, a independência, a ausência de sofrimento, de problemas, a existência feliz e a vida filosófica que a permita. Os exercícios espirituais, as reflexões, os diálogos, as meditações, as relações de mestre com discípulo, tudo isso visa a construção de uma subjetividade radiosa, solar, independente e livre. E da fabricação dessa individualidade nasce um prazer, o prazer obtido consigo mesmo. O eudemonismo, então, possibilita o hedonismo – definido pela capacidade de desfrutar de si como um ser em paz consigo mesmo, com o mundo e com os outros.
Michel ONFRAY. Contra-história da filosofia: as sabedorias antigas. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008.
Os dois estados diferem menos quanto à natureza do que quanto à intensidade, até mesmo quanto ao momento da experiência. O indivíduo em questão evolui em um mesmo mundo que supõe a capacidade de manter uma relação inteligente consigo mesmo, colocada sob o signo da pulsão de vida e radicalmente hostil a toda pulsão de morte. O prazer proporciona uma sensação bastante violenta para que provoque um curto-circuito da consciência: no momento do gozo, há apenas ele e não há lugar para a razão, a inteligência ou o trabalho intelectual útil para saber que se vive nesse momento emocional específico. Seu ser aniquila a capacidade de uma consciência de si como sujeito emocionado.
Em contrapartida, a felicidade situa-se a montante ou a jusante: antes do prazer esperado ou depois daquele que se teve, em todos os exemplos ela se manifesta com a consciência, graças a ela e à sua interferência. O estado de felicidade, menos violento que o de prazer, invoca a doçura, a paz, a serenidade, a calma aferente às certezas de que um acontecimento alegre ocorrerá ou acaba de ocorrer. Com a felicidade, o corpo conhece arroubos mais voluptuosos do que com o prazer, gerador de forças mais terríveis, de energias aumentadas e consideráveis.
Mas imaginar o hedonismo e o eudemonismo como dois mundos separados implica um erro. Nenhum instrumento de medida física ou metafísica permite qualificar nem quantificar as intensidades úteis para decidir qual deles, a felicidade ou o prazer, tem o papel principal. Assim impõe-se uma definição do prazer, pois dois milênios de cristianismo contribuem singularmente para diabolizar esse termo e torná-lo inaudível, carregado de miasmas e odorizado pelos gases pútridos do inferno católico. Pois só para seus detratores ele significa o abandono puro e simples aos instintos: nenhum hedonista jamais propôs como ideal os plenos poderes dos instintos, das pulsões, das forças noturnas que assemelham o homem ao mais selvagem, ao mais brutal animal.
A ética grega é eudemonista. Sejam quais forem as escolas, elas convidam o homem que pratica a filosofia a se desvencilhar do que impede sua felicidade, a trabalhar seus desejos para rarefazê-los e torná-los inofensivos, a se desfazer de todas as amarras que dificultam e até impossibilitam um trabalho de purificação de si mesmo. O propósito é a autonomia, a independência, a ausência de sofrimento, de problemas, a existência feliz e a vida filosófica que a permita. Os exercícios espirituais, as reflexões, os diálogos, as meditações, as relações de mestre com discípulo, tudo isso visa a construção de uma subjetividade radiosa, solar, independente e livre. E da fabricação dessa individualidade nasce um prazer, o prazer obtido consigo mesmo. O eudemonismo, então, possibilita o hedonismo – definido pela capacidade de desfrutar de si como um ser em paz consigo mesmo, com o mundo e com os outros.
Michel ONFRAY. Contra-história da filosofia: as sabedorias antigas. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008.
3 comentários:
Viu só? Rs A felicidade permite o prazer, e não o contrário...
necessario verificar:)
também acho rs
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