terça-feira, 29 de abril de 2008
Morin em vídeo
O pensador Edgar Morin (ver duas postagens abaixo) participou em 2007 de uma palestra do "Universo do Conhecimento", no Sesc Pinheiros. Um trecho do evento está disponível no site da entidade - clique aqui.
segunda-feira, 28 de abril de 2008
Público, privado e formação escolar
Para quem deseja discutir com um pouco mais de acuidade as espinhosas questões de formação escolar e "qualidade em educação", recomendamos o texto do Professor José Sérgio Fonseca de Carvalho, da FEUSP, que pode ser baixado no site do Grupo de Estudos Clássicos da FEUSP, em http://www.paideuma.net/grade7.htm
Edgar Morin
Mal-estar de Maio de 68 é ainda mais profundo hoje
FSP, 28/04/08
Samy Adghirni
O francês Edgar Morin é um dos últimos grandes pensadores vivos. Filósofo, historiador e sociólogo, aos 87 anos se empolga ao falar dos movimentos estudantis atuais e diz que uma das maiores conquistas de Maio de 68 foi a afirmação da adolescência como entidade social autônoma. Mas o intelectual acredita que a crise moral que provocou o levante de 40 anos atrás é hoje muito mais grave porque o mundo, segundo ele, perdeu totalmente a crença num futuro melhor.
Edgar Morin passou boa parte de sua trajetória intelectual defendendo a transdisciplinaridade, a idéia segundo a qual as ciências são complementares e o conhecimento só é válido quando colocado sob a luz da abrangência. Convidado a abrir a segunda edição do ciclo de palestras "Fronteiras do Pensamento Braskem-Copesul", em Porto Alegre, Morin avisou que o tema de sua intervenção seria "1968-2008: o mundo que eu vi e vivi". Foi uma oportuna maneira de analisar os rumos da humanidade às vésperas do 40º aniversário da revolta francesa de Maio de 1968, o evento estudantil e operário que ultrapassou fronteiras, disseminando os valores que até hoje norteiam boa parte da modernidade ocidental. Horas antes da palestra, no último dia 14, Morin conversou por 40 minutos com a Folha no saguão de um luxuoso hotel da capital gaúcha. Os gestos frágeis e a voz definhante não condizem com o discurso vibrante e apaixonadamente engajado de um homem que dedicou a vida ao entendimento humano.
FOLHA - Quarenta anos depois, o que ficou dos acontecimentos de Maio de 68?
EDGAR MORIN - 1968 foi, antes de mais nada, um ano de revolta estudantil e juvenil, numa onda que atingiu países de naturezas sociais e estruturas tão diferentes como Egito, EUA, Polônia... O denominador comum é uma revolta contra a autoridade do Estado e da família. A figura do pai de família perdeu importância, dando início a uma era de maior liberdade na relação entre pais e filhos. A revolta teve um caráter mais marcante nos países ocidentais desenvolvidos. Teóricos achavam que vivíamos numa sociedade que resolveria os problemas humanos mais fundamentais. E, de repente, percebeu-se que havia uma insatisfação na parte mais privilegiada dessa sociedade, que é a juventude estudante. Jovens de classes privilegiadas que desfrutavam de bens materiais preferiram buscar uma vida comunitária, num sinal de que o consumismo da sociedade ocidental não resolvia os problemas e aspirações humanas. Muitos desses jovens trocaram a cidade pela vida com as cabras, em busca de felicidade. Esses grupos não duraram, porque não conseguiram resolver os problemas e conflitos -só perduram comunidades que têm o cimento religioso. Mas o importante é que houve um processo de auto-afirmação da adolescência como entidade social e cultural. O rock, muito além da música, consiste em agrupamentos de jovens. É uma maneira de se vestir e se comportar. É a autonomização da adolescência, que se afirma por oposição ao mundo adulto dos professores e pais. Depois disso, a poeira baixou e tudo pareceu voltar ao que era antes. Mas houve mudanças, sim. Foi depois de 68 que os homossexuais e as minorias étnicas se afirmaram e que o novo feminismo se desenvolveu. A imprensa feminina francesa pré-68 dizia: "sejam bonitas e façam uma boa comidinha para agradar aos seus maridinhos". Depois de 68, essa mesma imprensa passou outro recado: "vocês estão ficando velhas, seus filhos foram embora e seus maridos as traem, então resistam". Foi uma verdadeira crise da idéia de felicidade, que é a grande mitologia da sociedade ocidental.
FOLHA - Um levante semelhante seria possível hoje em dia?
O francês Edgar Morin é um dos últimos grandes pensadores vivos. Filósofo, historiador e sociólogo, aos 87 anos se empolga ao falar dos movimentos estudantis atuais e diz que uma das maiores conquistas de Maio de 68 foi a afirmação da adolescência como entidade social autônoma. Mas o intelectual acredita que a crise moral que provocou o levante de 40 anos atrás é hoje muito mais grave porque o mundo, segundo ele, perdeu totalmente a crença num futuro melhor.
Edgar Morin passou boa parte de sua trajetória intelectual defendendo a transdisciplinaridade, a idéia segundo a qual as ciências são complementares e o conhecimento só é válido quando colocado sob a luz da abrangência. Convidado a abrir a segunda edição do ciclo de palestras "Fronteiras do Pensamento Braskem-Copesul", em Porto Alegre, Morin avisou que o tema de sua intervenção seria "1968-2008: o mundo que eu vi e vivi". Foi uma oportuna maneira de analisar os rumos da humanidade às vésperas do 40º aniversário da revolta francesa de Maio de 1968, o evento estudantil e operário que ultrapassou fronteiras, disseminando os valores que até hoje norteiam boa parte da modernidade ocidental. Horas antes da palestra, no último dia 14, Morin conversou por 40 minutos com a Folha no saguão de um luxuoso hotel da capital gaúcha. Os gestos frágeis e a voz definhante não condizem com o discurso vibrante e apaixonadamente engajado de um homem que dedicou a vida ao entendimento humano.
FOLHA - Quarenta anos depois, o que ficou dos acontecimentos de Maio de 68?
EDGAR MORIN - 1968 foi, antes de mais nada, um ano de revolta estudantil e juvenil, numa onda que atingiu países de naturezas sociais e estruturas tão diferentes como Egito, EUA, Polônia... O denominador comum é uma revolta contra a autoridade do Estado e da família. A figura do pai de família perdeu importância, dando início a uma era de maior liberdade na relação entre pais e filhos. A revolta teve um caráter mais marcante nos países ocidentais desenvolvidos. Teóricos achavam que vivíamos numa sociedade que resolveria os problemas humanos mais fundamentais. E, de repente, percebeu-se que havia uma insatisfação na parte mais privilegiada dessa sociedade, que é a juventude estudante. Jovens de classes privilegiadas que desfrutavam de bens materiais preferiram buscar uma vida comunitária, num sinal de que o consumismo da sociedade ocidental não resolvia os problemas e aspirações humanas. Muitos desses jovens trocaram a cidade pela vida com as cabras, em busca de felicidade. Esses grupos não duraram, porque não conseguiram resolver os problemas e conflitos -só perduram comunidades que têm o cimento religioso. Mas o importante é que houve um processo de auto-afirmação da adolescência como entidade social e cultural. O rock, muito além da música, consiste em agrupamentos de jovens. É uma maneira de se vestir e se comportar. É a autonomização da adolescência, que se afirma por oposição ao mundo adulto dos professores e pais. Depois disso, a poeira baixou e tudo pareceu voltar ao que era antes. Mas houve mudanças, sim. Foi depois de 68 que os homossexuais e as minorias étnicas se afirmaram e que o novo feminismo se desenvolveu. A imprensa feminina francesa pré-68 dizia: "sejam bonitas e façam uma boa comidinha para agradar aos seus maridinhos". Depois de 68, essa mesma imprensa passou outro recado: "vocês estão ficando velhas, seus filhos foram embora e seus maridos as traem, então resistam". Foi uma verdadeira crise da idéia de felicidade, que é a grande mitologia da sociedade ocidental.
FOLHA - Um levante semelhante seria possível hoje em dia?
MORIN - Fatos históricos dificilmente se repetem, mas eu me pergunto se a comemoração de Maio de 68 não vai estimular jovens a seguirem o mesmo caminho. Na França, houve recentemente uma pseudo-reforma do ensino que despertou mais uma vez movimentos estudantis consideráveis. Claro, não tem nada a ver com Maio de 68, mas é alguma coisa. Hoje em dia, movimentos estudantis se generalizam rapidamente e prosseguem mesmo quando o governo satisfaz os seus pedidos. É a alegria de estar juntos na rua, de desafiar os professores e a polícia. Até quando as reivindicações são ridículas, o fenômeno é importante, pois permite ao jovem tornar-se cidadão, escapando assim da crescente tendência ao apolitismo.
FOLHA - Mas o mal-estar que causou Maio de 68 permanece...
MORIN - Não só permanece, como agravou-se. Onde há vida urbana e desenvolvimento, há estresse e ritmos de trabalho desumanos. A poluição causa males terríveis, e nossa civilização é incapaz de impedir a criação de ilhas de miséria. Mas o que piorou mesmo foi o fato de termos perdido a fé no progresso. O mundo ocidental dava como certa a idéia de que o amanhã seria radioso. Mas, nos anos 90, percebeu-se que a ciência trazia também coisas como armas de destruição em massa e que a economia estava desregulada, enterrando de vez a promessa de que as crises haviam deixado de existir. O sentimento de precariedade é agravado pelo fato de os pais não saberem se seus filhos terão um emprego. Tampouco há esperança vinda da esfera política. Os políticos hoje se contentam em pegar carona no crescimento econômico. Não bastasse a ilusão de que esse crescimento da economia resolveria os problemas, eis que agora impera a estagnação. O mal-estar está mais profundo, inclusive nas classes que têm acesso ao consumo. E quando não há mais futuro, a gente se agarra a um presente desprovido de sentido ou ao passado -nação e religião.
FOLHA - O senhor acredita no choque das civilizações?
MORIN - Parece cada vez mais grave a confrontação entre os mundos árabe-islâmico e ocidental. Mas isso não é um choque de civilizações, até porque boa parte do mundo muçulmano está amplamente ocidentalizada. O problema é que os países árabe-islâmicos estão tomados por um desespero ligado ao fracasso da democracia e do socialismo naquela região e à imensa corrupção trazida pelo capitalismo. Diante disso, parte da população torna-se ultra-religiosa e pensa que a salvação está numa interpretação integrista da sharia, a lei islâmica. O choque das civilizações é uma profecia que se auto-realiza. Acreditar nela é estimulá-la. Além disso, islã, cristianismo e judaísmo têm um tronco comum. São fés monoteístas muito parecidas. Por isso me tranqüiliza saber que grandes civilizações como a China e a Índia tiveram a felicidade de escapar disso. Muitos males advêm dos monoteísmos. Olhe o que acontece com a questão israelo-palestina. Nos dois lados impera cada vez mais a visão religiosa de um problema fundamentalmente nacionalista. Repare na força dos evangélicos nos EUA, berço da sociedade mais materialista do mundo e onde a teoria do criacionismo não pára de se espalhar. Tudo isso é uma grande regressão. Não acredito no choque das civilizações, acredito na volta da barbárie em suas mais diversas formas.
FOLHA - Mas o mal-estar que causou Maio de 68 permanece...
MORIN - Não só permanece, como agravou-se. Onde há vida urbana e desenvolvimento, há estresse e ritmos de trabalho desumanos. A poluição causa males terríveis, e nossa civilização é incapaz de impedir a criação de ilhas de miséria. Mas o que piorou mesmo foi o fato de termos perdido a fé no progresso. O mundo ocidental dava como certa a idéia de que o amanhã seria radioso. Mas, nos anos 90, percebeu-se que a ciência trazia também coisas como armas de destruição em massa e que a economia estava desregulada, enterrando de vez a promessa de que as crises haviam deixado de existir. O sentimento de precariedade é agravado pelo fato de os pais não saberem se seus filhos terão um emprego. Tampouco há esperança vinda da esfera política. Os políticos hoje se contentam em pegar carona no crescimento econômico. Não bastasse a ilusão de que esse crescimento da economia resolveria os problemas, eis que agora impera a estagnação. O mal-estar está mais profundo, inclusive nas classes que têm acesso ao consumo. E quando não há mais futuro, a gente se agarra a um presente desprovido de sentido ou ao passado -nação e religião.
FOLHA - O senhor acredita no choque das civilizações?
MORIN - Parece cada vez mais grave a confrontação entre os mundos árabe-islâmico e ocidental. Mas isso não é um choque de civilizações, até porque boa parte do mundo muçulmano está amplamente ocidentalizada. O problema é que os países árabe-islâmicos estão tomados por um desespero ligado ao fracasso da democracia e do socialismo naquela região e à imensa corrupção trazida pelo capitalismo. Diante disso, parte da população torna-se ultra-religiosa e pensa que a salvação está numa interpretação integrista da sharia, a lei islâmica. O choque das civilizações é uma profecia que se auto-realiza. Acreditar nela é estimulá-la. Além disso, islã, cristianismo e judaísmo têm um tronco comum. São fés monoteístas muito parecidas. Por isso me tranqüiliza saber que grandes civilizações como a China e a Índia tiveram a felicidade de escapar disso. Muitos males advêm dos monoteísmos. Olhe o que acontece com a questão israelo-palestina. Nos dois lados impera cada vez mais a visão religiosa de um problema fundamentalmente nacionalista. Repare na força dos evangélicos nos EUA, berço da sociedade mais materialista do mundo e onde a teoria do criacionismo não pára de se espalhar. Tudo isso é uma grande regressão. Não acredito no choque das civilizações, acredito na volta da barbárie em suas mais diversas formas.
FOLHA - Uma das maiores mudanças mundiais das últimas décadas, a internet, na sua opinião, afastou ou aproximou as pessoas?
MORIN - Se considerarmos o fato de a internet ser um instrumento polivalente, que serve até aos interesses do crime, acho que a rede aproxima as pessoas. A internet tornou-se um sistema nervoso artificial que tomou conta do planeta. É algo que ajuda muito na hora de desenvolver afinidades, encontrar amigos, amores ou parceiros de hobby. A internet é um fato universal importantíssimo. Mas os sistemas de comunicação não criam compreensão. A comunicação apenas transmite informação. É preciso estimular o surgimento de uma consciência planetária. Se a internet não desenvolver a idéia da comunidade de destinos da humanidade, terá apenas uma função limitada e parcelar.
FOLHA - Que papel restou para o intelectual hoje?
MORIN - O intelectual é alguém que toma a palavra em público para levantar problemas fundamentais. Infelizmente, os intelectuais foram levianos quando se tornaram stalinistas ou maoístas. Eles enganaram as pessoas.Por outro lado, é ruim quando nos deparamos com um mundo entregue a peritos, especialistas e economistas, que são incapazes de enxergar a abrangência dos problemas essenciais e globais.Intelectuais são necessários, mesmo quando eles se enganam. Quanto mais o mundo acha que não precisa deles, mais eles fazem falta (risos).
MORIN - Se considerarmos o fato de a internet ser um instrumento polivalente, que serve até aos interesses do crime, acho que a rede aproxima as pessoas. A internet tornou-se um sistema nervoso artificial que tomou conta do planeta. É algo que ajuda muito na hora de desenvolver afinidades, encontrar amigos, amores ou parceiros de hobby. A internet é um fato universal importantíssimo. Mas os sistemas de comunicação não criam compreensão. A comunicação apenas transmite informação. É preciso estimular o surgimento de uma consciência planetária. Se a internet não desenvolver a idéia da comunidade de destinos da humanidade, terá apenas uma função limitada e parcelar.
FOLHA - Que papel restou para o intelectual hoje?
MORIN - O intelectual é alguém que toma a palavra em público para levantar problemas fundamentais. Infelizmente, os intelectuais foram levianos quando se tornaram stalinistas ou maoístas. Eles enganaram as pessoas.Por outro lado, é ruim quando nos deparamos com um mundo entregue a peritos, especialistas e economistas, que são incapazes de enxergar a abrangência dos problemas essenciais e globais.Intelectuais são necessários, mesmo quando eles se enganam. Quanto mais o mundo acha que não precisa deles, mais eles fazem falta (risos).
Dilemas
Hoje, duas das mais candentes discussões éticas colocam-se simetricamente nos extremos da vida: o aborto e a eutanásia. O texto de Rubem Alves indica como para todo problema complexo existe uma solução simples - que está errada.
"Não sejas demasiado justo"
Rubem Alves
FSP, 01/04/08
Era um debate sobre o aborto na TV. A questão não era "ser a favor"ou "contra o aborto". O que se buscava eram diretrizes éticas para se pensar sobre o assunto.
Será que existe um princípio ético absoluto que proíba todos os tipos de aborto? Ou será que o aborto não pode ser pensado "em geral", tendo de ser pensado "caso a caso"? Por exemplo: um feto sem cérebro. É certo que ele morrerá ao nascer. Esse não seria um caso para se permitir o aborto, para poupar a mulher do sofrimento de gerar uma coisa morta por nove meses?
Um dos debatedores era um teólogo católico. Como se sabe, a ética católica é a ética dos absolutos. Ela não discrimina abortos. Todos os abortos são iguais. Todos os abortos são assassinatos.
Terminando o debate, o teólogo concluiu com esta afirmação: "Nós ficamos com a vida!"
O mais contundente nessa afirmação está não naquilo que ela diz claramente, mas naquilo que ela diz sem dizer: "Nós ficamos com a vida. Os outros, que não concordam conosco, ficam com a morte..."
Mas eu não concordo com a posição teológica da igreja -sou favorável, por razões de amor, ao aborto de um feto sem cérebro- e sustento que o princípio ético supremo é a reverência pela vida.
Lembrei-me do filme a "Escolha de Sofia". Sofia, mãe com seus dois filhos, numa estação ferroviária da Alemanha nazista. Um trem aguardava aqueles que nele seriam embarcados para a morte nas câmaras de gás. O guarda que fazia a separação olha para Sofia e lhe diz: "Apenas um filho irá com você. O outro embarcará nesse trem..." E apontou para o trem da morte.
Já me imaginei vivendo essa situação: meus dois filhos -como os amo-, eu os seguro pela mão, seus olhos nos meus. A alternativa à minha frente é: ou morre um ou morrem os dois. Tenho de tomar a decisão. Se eu me recusasse a decidir pela morte de um, alegando que eu fico com a vida, os dois seriam embarcados no trem da morte... Qual deles escolherei para morrer? Acho que a ética do teólogo católico não ajudaria Sofia.
Você é médico, diretor de uma UTI que, naquele momento, está lotada, todos os leitos tomados, todos os recursos esgotados. Chega um acidentado grave que deve ser socorrido imediatamente para não morrer. Para aceitá-lo, um paciente deverá ser desligado das máquinas que o mantém vivo. Qual seria a sua decisão? Qual princípio ético o ajudaria na sua decisão? Qualquer que fosse a sua decisão, por causa dela uma pessoa morreria.
Lembro-me do incêndio do edifício Joelma. Na janela de um andar alto, via-se uma pessoa presa entre as chamas que se aproximavam e o vazio à sua frente. Em poucos minutos as chamas a transformariam numa fogueira. Para ela, o que significa dizer "eu fico com a vida"? Ela ficou com a vida: lançou-se para a morte.
Ah! Como seria simples se as situações da vida pudessem ser assim colocadas com tanta simplicidade: de um lado a vida e do outro a morte. Se assim fosse, seria fácil optar pela vida. Mas essa encruzilhada simples entre o certo e o errado só acontece nos textos de lógica. O escritor sagrado tinha consciência das armadilhas da justiça em excesso e escreveu: "Não sejas demasiado justo porque te destruirás a ti mesmo..."
"Não sejas demasiado justo"
Rubem Alves
FSP, 01/04/08
Era um debate sobre o aborto na TV. A questão não era "ser a favor"ou "contra o aborto". O que se buscava eram diretrizes éticas para se pensar sobre o assunto.
Será que existe um princípio ético absoluto que proíba todos os tipos de aborto? Ou será que o aborto não pode ser pensado "em geral", tendo de ser pensado "caso a caso"? Por exemplo: um feto sem cérebro. É certo que ele morrerá ao nascer. Esse não seria um caso para se permitir o aborto, para poupar a mulher do sofrimento de gerar uma coisa morta por nove meses?
Um dos debatedores era um teólogo católico. Como se sabe, a ética católica é a ética dos absolutos. Ela não discrimina abortos. Todos os abortos são iguais. Todos os abortos são assassinatos.
Terminando o debate, o teólogo concluiu com esta afirmação: "Nós ficamos com a vida!"
O mais contundente nessa afirmação está não naquilo que ela diz claramente, mas naquilo que ela diz sem dizer: "Nós ficamos com a vida. Os outros, que não concordam conosco, ficam com a morte..."
Mas eu não concordo com a posição teológica da igreja -sou favorável, por razões de amor, ao aborto de um feto sem cérebro- e sustento que o princípio ético supremo é a reverência pela vida.
Lembrei-me do filme a "Escolha de Sofia". Sofia, mãe com seus dois filhos, numa estação ferroviária da Alemanha nazista. Um trem aguardava aqueles que nele seriam embarcados para a morte nas câmaras de gás. O guarda que fazia a separação olha para Sofia e lhe diz: "Apenas um filho irá com você. O outro embarcará nesse trem..." E apontou para o trem da morte.
Já me imaginei vivendo essa situação: meus dois filhos -como os amo-, eu os seguro pela mão, seus olhos nos meus. A alternativa à minha frente é: ou morre um ou morrem os dois. Tenho de tomar a decisão. Se eu me recusasse a decidir pela morte de um, alegando que eu fico com a vida, os dois seriam embarcados no trem da morte... Qual deles escolherei para morrer? Acho que a ética do teólogo católico não ajudaria Sofia.
Você é médico, diretor de uma UTI que, naquele momento, está lotada, todos os leitos tomados, todos os recursos esgotados. Chega um acidentado grave que deve ser socorrido imediatamente para não morrer. Para aceitá-lo, um paciente deverá ser desligado das máquinas que o mantém vivo. Qual seria a sua decisão? Qual princípio ético o ajudaria na sua decisão? Qualquer que fosse a sua decisão, por causa dela uma pessoa morreria.
Lembro-me do incêndio do edifício Joelma. Na janela de um andar alto, via-se uma pessoa presa entre as chamas que se aproximavam e o vazio à sua frente. Em poucos minutos as chamas a transformariam numa fogueira. Para ela, o que significa dizer "eu fico com a vida"? Ela ficou com a vida: lançou-se para a morte.
Ah! Como seria simples se as situações da vida pudessem ser assim colocadas com tanta simplicidade: de um lado a vida e do outro a morte. Se assim fosse, seria fácil optar pela vida. Mas essa encruzilhada simples entre o certo e o errado só acontece nos textos de lógica. O escritor sagrado tinha consciência das armadilhas da justiça em excesso e escreveu: "Não sejas demasiado justo porque te destruirás a ti mesmo..."
quarta-feira, 23 de abril de 2008
Encontro de professores de filosofia
Venho uma vez mais divulgar um evento. Trata-se do 2º Encontro de professores de filosofia do ABC, que é voltado especialmente aos professores de filosofia da educação básica. Ocorrerá dia 17/5 (sábado), das 9h às 13h no Campus Rudge Ramos da Universidade Metodista de S. Paulo. As incrições são gratuitas e podem ser feitas no site do Curso de Filosofia (clique aqui), onde também estão disponíveis outras informações.
Clique no cartaz abaixo para ampliá-lo.
Clique no cartaz abaixo para ampliá-lo.
sábado, 19 de abril de 2008
Caverna (de novo)
Não há dúvidas de que a parábola da caverna é um dos (se não O) textos mais repetidos ao longo da história da filosofia. Dentre as leituras diversas e interpretações que se pretendem originais, gosto daquela de Hannah Arendt faz em Entre o passado e o futuro, justamente quando a autora afirma ser Platão o iniciador daquilo que chama por "tradição" da filosofia política.
Não, não vou dizer qual é a interpretação que Arendt faz da parábola. Quem quiser que leia!!!
E quem quiser assistir uma curta animação inspirada na parábola platonista, clique aqui.
Não, não vou dizer qual é a interpretação que Arendt faz da parábola. Quem quiser que leia!!!
E quem quiser assistir uma curta animação inspirada na parábola platonista, clique aqui.
quarta-feira, 16 de abril de 2008
A Parábola da Caverna
Vídeo produzido pela Viviane Mosé, para o quadro "Ser ou Não Ser", apresentado no Fantástico. É claro que algumas ressalvas podem ser feitas, mas vale a pena ser visto, depois de se ler o texto de Platão.
domingo, 6 de abril de 2008
Qual é a sua parte?
Durante o evento que realizamos hoje sobre a Identidade do Professor pensamos sobre nossa profissão de várias formas, em muitos momentos... Durante as oficinas, colocamos a seguinte situação para nossos colegas: Você está andando na rua durante uma noite muito fria. Durante sua caminhada em direção a sua casa, você percebe encolhida num canto da calçada uma criança. Ela está completamente sozinha, com frio e provavelmente com fome. Dado isto você tem três opções. Primeira, você reclama do governo, xinga e se revolta, vai para casa determinado a se tornar um ativista político. Segunda, você pede em oração que Deus prova um cobertor para aquela criança e que ela saia daquela situação... coitadinha... Terceira: você vai até sua casa, pega um cobertor e um prato de comida e leva para aquela criança.
Qual das opções pode resolver o problema a curto prazo? Tanto a história quanto essa primeira pergunta foram criadas por um importante lider religioso, o Dalai Lama. Em nenhuma oficina tivemos problema com essa resposta: todos optaram por levar o cobertor à criança...
Mas e a longo prazo? E todas as crianças pelas quais você não passou naquela noite?
O problema desta oficina é um problema ético: o que fazer diante desta situação, e de tantas outras que se assemelham no que tange a esvaziação do sentido de dignidade que nós enfrentamos dia-a-dia em nossa profissão? O que estamos fazendo como cidadãos? Não podemos pensar numa identidade sem pensar em atividade, sem pensar no que fazemos, pois nossas ações são guiadas pelos nossas valores, e nossos valores edificam nossa identidade. Podemos então pensar em identidade, em atividade como professores, se não pensarmos em nossa identidade como cidadãos brasileiros?
A acomodação é o caminho mais fácil. Quantos de nós, com toda franqueza, nem ao menos perceberia a criança no chão?... A miséria é algo banal em nossa sociedade... ela é algo "normal"... e a quantos passos o normal fica, dentro do senso comum, do que é "natural"?...
Não corremos o risco de banalizar a vida, por que já o fazemos. Não estará na hora de corrermos o risco de tentar lutar por uma melhoria significativa para esta criança da noite fria, e para todas de nosso país?...
sexta-feira, 4 de abril de 2008
Liberdade sem Deus
O tema "deus" é invariavelmente causador de polêmicas entre os leitores de filosofia. Isso se deve, acredito, a uma certa dificuldade das pessoas em lidar separadamente com sua fé e com um "objeto de estudos". Curioso é que fazemos isso em outras áreas: estudamos que a qualidade do ar é nociva à saúde, mas não saímos dos centros urbanos para buscar um ar mais puro: parece que o ar estudado é diferente do ar respirado. O mesmo não acontece com deus: muitas vezes, quando um filósofo propõe alguma argumentação que envolva deus, seu interlocutor põe a crença pessoal como uma barreira que impede a reflexão filosófica, mais ou menos como que censurando o assunto.
A postura dos filósofos quanto ao "problema de deus" (essa expressão é no mínimo curiosa... mas refere-se a deus como problema filosófico) é bastante diversa; vai desde a busca por uma prova lógica ou ontológica de sua existência (Tomás) até a tentativa e sucesso no assassinato da figura divina (Nietzsche), passando por tantas outras. Uma destas posturas que mais me agrada é a de Sartre, que se poupa de discutir a existência ou não de deus: ele parte do princípio de que deus não existe. E, se não existe, não há porque empreender tempo filosofando sobre ele...
É nesse contexto que Sartre desenvolve sua filosofia existencialista que, sobre esse aspecto, pode ser entendida no seguinte trecho:
Extraído de O existencialismo é um humanismo
E, para quem se permitir, algumas risadas podem ser extraídas com o vídeo Deus é pai disponível aqui.
A postura dos filósofos quanto ao "problema de deus" (essa expressão é no mínimo curiosa... mas refere-se a deus como problema filosófico) é bastante diversa; vai desde a busca por uma prova lógica ou ontológica de sua existência (Tomás) até a tentativa e sucesso no assassinato da figura divina (Nietzsche), passando por tantas outras. Uma destas posturas que mais me agrada é a de Sartre, que se poupa de discutir a existência ou não de deus: ele parte do princípio de que deus não existe. E, se não existe, não há porque empreender tempo filosofando sobre ele...
É nesse contexto que Sartre desenvolve sua filosofia existencialista que, sobre esse aspecto, pode ser entendida no seguinte trecho:
O existencialista, pelo contrário, pensa que é muito incomodativo que Deus não exista, porque desaparece com ele toda a possibilidade de achar valores num céu inteligível; não pode existir já o bem a priori, visto não haver já uma consciência infinita e perfeita para pensá-lo; não está escrito em parte alguma que o bem existe, que é preciso ser honesto, que não devemos mentir, já que precisamente estamos agora num plano em que há somente homens. Dostoiévski escreveu: “Se Deus não existisse, tudo seria permitido”. Aí se situa o ponto de partida do existencialismo. Com efeito, tudo é permitido se Deus não existe, fica o homem, por conseguinte, abandonado, já que não encontra em si,nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue. Antes de mais nada, não há desculpas para ele. Se, com efeito, a existência precede a essência, não será nunca possível referir uma explicação a uma natureza humana dada e imutável; por outras palavras, não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Se, por outro lado, Deus não existe, não encontramos diante de nós valores ou imposições que nos legitimem o comportamento. Assim, não temos nem atrás de nós, nem diante de nós, no domínio luminoso dos valores, justificações ou desculpas. Estamos sós e sem desculpas. É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado porque não se criou a si próprio; e, no entanto, livre porque, uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer.
Extraído de O existencialismo é um humanismo
E, para quem se permitir, algumas risadas podem ser extraídas com o vídeo Deus é pai disponível aqui.
terça-feira, 1 de abril de 2008
Bolinho de chuva no início do universo
Domingo de tarde estava meio frio e comíamos bolinhos de chuva com café. De repente, a discussão (de uma maneira bem socrática, já que o velhinho de Atenas nos ensinou a seguir o lógos onde quer que ele nos levasse...) passou a versar sobre o Universo, sua existência, origem, destino e tal. Eu disse que, se girássemos o tempo ao contrário, iríamos ver o mundo correr para seu princípio, que seria o que os físicos chamam de singularidade, uma situação na qual o tempo e todas as outras dimensões seriam reduzidos a um único ponto, onde as teorias que usamos para explicar o mundo deixariam de valer (já que seriam unificadas em uma única e incognoscível lei).
E isso é bem difícil de se imaginar, já que as condições que permitem nosso pensamento são, todas elas, regidas pelo espaço e pelo tempo. Se pensar em um mundo no qual não haja espaço já é difícil, imaginar um no qual o tempo não exista é pedir demais para nossos combalidos neurônios. Mas esse seria o começo de tudo, um começo sem tempo e sem espaço, já que nenhum dos dois teria, ainda, sido criado. Depois do Big Bang, da explosão desse ponto de singularidade, então teríamos os átomos, e as moléculas, os planetas e neles, todo o resto (e uma grande questão - mais uma - : por que diabos o ser e não o nada?...
Antes, porém, não havia nada, já que não havia cosmos. "Mas, e antes do cosmos, do universo existir, caro comedor de bolinhos de chuva, o que existia?". Se Santo Agostinho gostava de dizer que antes de fazer o mundo Deus se ocupava de preparar o inferno para quem perguntasse essas coisas, agora podemos dizer, depois da Relatividade, de Plank, de Hawking: antes de haver o mundo, nada havia, nem a condição de se pensar em um "antes". O tempo, sendo resultado da criação do cosmos, resultado da saída do estado de singularidade para aquele que acabou dando nesse aqui, onde existem seres humanos e internet e blogs, não existia antes dele, antes do universo. O antes não existia antes que houvesse algum depois, mesmo que muito pequeno...
Nessa hora, pediram para que mergulhasse meu bolinho de chuva no café e comesse, porque ia ficando frio.
O que isso tem a ver com filosofia? Tudo. As questões dos primeiros filósofos se parecem, muito, com as questões de nossa ciência cosmológica mais avançada. Tales, Anaximandro, Demócrito, Heráclito, todos eles e seus outros companheiros lançaram-se na tentativa de responder às questões que ainda nos assombram, como essa da origem do universo. O que acontece, por vezes, é que os que lidam com filosofia não tem familiaridade com a ciência, ou mesmo consideram-na como algum tipo de ferramenta, regida pela utilidade, pela aplicabilidade. Compreender assim a ciência é compreendê-la mal. A falta de uma educação científica é um problema tão (ou mais!) sério que a falta de uma educação filosófica. Saímos da escola como se ainda vivêssemos no tempo tridimensional de Newton, quando estamos no mundo pluridimensional de Einsten...
E isso é bem difícil de se imaginar, já que as condições que permitem nosso pensamento são, todas elas, regidas pelo espaço e pelo tempo. Se pensar em um mundo no qual não haja espaço já é difícil, imaginar um no qual o tempo não exista é pedir demais para nossos combalidos neurônios. Mas esse seria o começo de tudo, um começo sem tempo e sem espaço, já que nenhum dos dois teria, ainda, sido criado. Depois do Big Bang, da explosão desse ponto de singularidade, então teríamos os átomos, e as moléculas, os planetas e neles, todo o resto (e uma grande questão - mais uma - : por que diabos o ser e não o nada?...
Antes, porém, não havia nada, já que não havia cosmos. "Mas, e antes do cosmos, do universo existir, caro comedor de bolinhos de chuva, o que existia?". Se Santo Agostinho gostava de dizer que antes de fazer o mundo Deus se ocupava de preparar o inferno para quem perguntasse essas coisas, agora podemos dizer, depois da Relatividade, de Plank, de Hawking: antes de haver o mundo, nada havia, nem a condição de se pensar em um "antes". O tempo, sendo resultado da criação do cosmos, resultado da saída do estado de singularidade para aquele que acabou dando nesse aqui, onde existem seres humanos e internet e blogs, não existia antes dele, antes do universo. O antes não existia antes que houvesse algum depois, mesmo que muito pequeno...
Nessa hora, pediram para que mergulhasse meu bolinho de chuva no café e comesse, porque ia ficando frio.
O que isso tem a ver com filosofia? Tudo. As questões dos primeiros filósofos se parecem, muito, com as questões de nossa ciência cosmológica mais avançada. Tales, Anaximandro, Demócrito, Heráclito, todos eles e seus outros companheiros lançaram-se na tentativa de responder às questões que ainda nos assombram, como essa da origem do universo. O que acontece, por vezes, é que os que lidam com filosofia não tem familiaridade com a ciência, ou mesmo consideram-na como algum tipo de ferramenta, regida pela utilidade, pela aplicabilidade. Compreender assim a ciência é compreendê-la mal. A falta de uma educação científica é um problema tão (ou mais!) sério que a falta de uma educação filosófica. Saímos da escola como se ainda vivêssemos no tempo tridimensional de Newton, quando estamos no mundo pluridimensional de Einsten...
"Filosofia Existencial: Leituras de Jean-Paul Sartre"
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